jeudi 16 janvier 2020

Prefácio à TODOS os editoriais do jornal COMBATE (1974-1978)

Prefácio à
TODOS os editoriais do jornal COMBATE  (1974-1978)

Os três fundadores do jornal Combate — por ordem alfabética: João Bernardo, João Crisóstomo e Rita Delgado — pertenciam até ao 25 de Abril de 1974 a uma organização marxista-leninista, os Comités Comunistas Revolucionários [1] , mas desde 1972 estavam em ruptura com o leninismo e neste sentido conduziam uma luta interna nos CCR.

Aliás, João Crisóstomo não pertencia formalmente aos CCR, porque era um activista muito conhecido e vigiado de perto pela polícia política, o que representava um grande risco para uma organização clandestina, mas através de laços pessoais e outras afinidades integrava-se na área política dos CCR. João Crisóstomo morreu prematuramente, na noite em que iria completar quarenta anos, e só restam os outros dois para contar a história.

O golpe militar do 25 de Abril alterou completamente o panorama político. Virámos as costas aos CCR e à tentativa de o transformar internamente e decidimos de imediato conduzir a luta política no novo terreno, através de um jornal ligado exclusivamente às lutas dos trabalhadores, que por todo o lado se desencadeavam com o fim do fascismo e da proibição das greves e a instauração da liberdade política.

Sem o génio táctico do João Crisóstomo, a sua enorme rede de contactos e a sua capacidade para se desdobrar em iniciativas múltiplas, o Combate não teria surgido tão cedo. Assim, ainda não tinham passado dois meses sobre o 25 de Abril e já o primeiro número do jornal era publicado. Não tínhamos sede, e para isso usávamos o pequeníssimo apartamento do João Crisóstomo. Era lá que nos reuníamos, por vezes vinte pessoas ou mais. Também é verdade que a Rita Delgado e o João Bernardo, ambos regressados do exílio em Paris, nem casa tinham e moravam em casa de amigos.

O colectivo do Combate, então formado, não tinha nenhuma outra estrutura que não fosse ligada às necessidades do trabalho e as reuniões eram abertas a quem quisesse participar. Mas, para evitar os parasitas que abundam neste meio, o João Crisóstomo introduziu uma norma — a de que nas reuniões podia falar quem quisesse, mas só poderia votar quem se encarregasse de alguma tarefa relacionada com a preparação do número seguinte do jornal. Também não existiam hierarquias internas, e o nome do director, que aparece no cimo da primeira página, destinava-se apenas a cumprir uma exigência legal.

Por outro lado, para evitar a distorção das posições tomadas pelos trabalhadores e a selecção abusiva de algumas declarações, com exclusão de outras, decidimos que as entrevistas seriam publicadas na íntegra. O inconveniente era que podiam ser fastidiosas para o leitor, mas com a grande vantagem de apresentarem uma abordagem política honesta. E para nós a vantagem prevaleceu sobre os inconvenientes.

O Combate atraiu de imediato um bom número de pessoas, insatisfeitas com os partidos e grupúsculos de extrema-esquerda e que procuravam acima de tudo apoiar as lutas concretas dos trabalhadores e não defender uma ou outra ortodoxia política. Por isso havia no grupo que sustentava o jornal quem se definisse como conselhista ou como anarquista ou como libertário ou como marxista ou como feminista ou como situacionista, sem contar com aqueles que não se definiam como coisa nenhuma a não ser uma, que nos unia a todos, a de prestar apoio às lutas em curso. Além da divulgação das lutas através do jornal, procurávamos organizar reuniões entre trabalhadores de diferentes empresas, o que conseguimos apenas em poucos casos, mas foi o Combate o primeiro a organizar um espectáculo público de canto e declamação de poemas (a cultura portuguesa, incluindo a cultura popular, preza muito a poesia) em apoio a três empresas em autogestão, as iniciadoras de um movimento que atingiria depois enormes proporções.

Não nos considerávamos nem uma organização política nem um embrião de organização. Pelo contrário, sabíamos que o Combate nascera com as lutas e terminaria quando as lutas perdessem o dinamismo que então as caracterizava. Por isso no Manifesto, que era a plataforma política do jornal, em vez de apresentarmos um receituário de doutrina que coubesse às massas aplicar para chegar ao paraíso, procurámos reflectir as posições mais avançadas que víamos os trabalhadores tomarem na prática. Isto explica as várias alterações e acrescentos ao Manifesto, todos eles reflectindo a evolução ideológica que estava a operar-se na própria base trabalhadora em luta. Uma das mais importantes alterações introduzidas no Manifesto diz respeito à luta nas colónias em vias de independência, nomeadamente em Angola, em que apoiámos os movimentos de massas, acusados de «bandidos» pelo aparelho político do MPLA. Isso provocou a saída de alguns maoístas que até esse momento haviam colaborado com o jornal.

Além do Manifesto, a nossa posição política exprimia-se nos editoriais, um em cada número do jornal. Naquela época em que não havia internet nem telemóveis e em que os contactos tinham de ser presenciais, o tema do editorial e as suas linhas de abordagem eram discutidos numa reunião e encarregava-se alguém de o redigir, de acordo com o que fora decidido. Ora, é interessante notar que nunca houve reclamações de que a redacção final não correspondesse às decisões tomadas em reunião.

Mas a estrutura do Combate depressa ficou mais complicada com o aparecimento do grupo do Porto, no qual José Elísio teve uma participação muito activa, e que frequentemente mostrava mais dinamismo do que o grupo de Lisboa. Por vezes alguns de nós deslocavam-se entre as duas cidades e usávamos o telefone para discutir os editoriais. De resto, a organização interna do grupo no Porto era idêntica à de Lisboa.

Também é necessário considerar que, se a cintura industrial de Lisboa, que existia naquela época, incluía grandes empresas, ela era controlada de muito perto pelo Partido Comunista, enquanto a grande zona industrial que tem o Porto como centro incluía empresas de menores dimensões e onde o Partido Comunista não era hegemónico ou nem sequer tinha presença. Esta situação contribuiu para o dinamismo mostrado pelos companheiros do Porto, que tomaram a iniciativa de fundar uma livraria, Contra a Corrente, dedicada exclusivamente à difusão de livros e jornais dos variados grupos da extrema-esquerda, nomeadamente de outros países, já que prezávamos o internacionalismo, como aliás se pode ver por notícias publicadas no Combate. Depois, o grupo de Lisboa fundou também uma livraria Contra a Corrente, mas foi o Porto o pioneiro.

E com a fundação da livraria de Lisboa o João Crisóstomo pôde, enfim, ter mais sossego em casa, porque foi na livraria que as reuniões passaram a realizar-se. A estrutura das livrarias era a mesma que a do jornal, sem nenhuma hierarquia interna. E, tal como o jornal se abria às lutas dos trabalhadores, também disponibilizávamos as livrarias para reuniões de grupos de carácter libertário ou antiautoritário, com a condição de depois limparem o espaço e deixarem tudo arrumado. Nomeadamente, reunia na Contra a Corrente de Lisboa um dos primeiros grupos feministas.

Tudo somado, a perspicácia demonstrada pelos editoriais do Combate, para quem os leia agora, se comparados com os textos emanados dos grupos de extrema-esquerda, deve-se ao facto simples de frequentarmos apenas o meio constituído pelas empresas em luta e de acompanharmos o vaivém dessas lutas, os seus ziguezagues, sem nos iludirmos nem com os partidos políticos, que aliás de pouco valiam então, nem com as facções do Movimento das Forças Armadas, que era quem detinha o poder armado e o poder político. Por isso pudemos manifestar-nos em editorial contra as nacionalizações subsequentes ao 11 de Março de 1975, insistindo a partir de então no lema: Nem capitalismo privado nem capitalismo de Estado. As nacionalizações não resolviam os problemas colocados, perpetuando o capitalismo com outros actores. Esta posição ditou o isolamento político do Combate relativamente aos sectores mais esquerdistas do poder, representados no interior do MFA pela facção de Otelo Saraiva de Carvalho e, no meio partidário, pelo Partido Revolucionário do Proletariado (PRP).

Foi também o facto de estarmos estreitamente ligados às lutas práticas nas empresas, sem nos obnubilarmos com as facções militares e as suas excrescências partidárias, que nos levou a ver, muito antes de todos os outros, que as lutas estavam a perder o dinamismo. Percebíamos que as assembleias de empresa eram cada vez menos frequentadas e que as Comissões de Trabalhadores se sentiam impotentes perante a crescente indiferença das bases. Por isso, durante aquele período a que os jornalistas chamavam, e hoje os historiadores chamam, o Verão Quente de 1975, o Combate alertava para o facto de a mola real das lutas parecer quebrada.

Sabíamos que nascemos com as lutas e que morreríamos com elas. No final da sua existência o Combate passou do formato de jornal ao de revista e espaçou a periodicidade. E o último número do jornal foi um epílogo, dedicado à questão camponesa, onde reunimos os materiais que ainda tínhamos em arquivo e procedemos a um balanço do tema.

Decidíramos ter uma função e executámo-la o melhor que soubemos. Mas talvez a nossa maior vitória fosse a de em momento nenhum termos gerado uma nova micro-burocracia.

João Bernardo

José Elísio

Rita Delgado

Novembro 2019
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NOTA
In Colectivo COMBATE, Vosstanie Éditions, Janeiro 2020
Prefácio do fundadores do jornal, Manifesto inaugural,  Apresentação : Colectivo do COMBATE - 4 de Abril de 1975, 47 editoriais, índices de nomes e assuntos. 14*21 brochado, 288 págs.
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