Circunstâncias…
I
A 5 de julho de 2012, António
Vilarigues (A.V.), figura importante do partido comunista português, publica no
jornal do partido, Avante, o texto
«Algumas notas sobre o óbvio», no qual critica « alguns radicais
pequeno-burgueses (que) descobriram duas teses espantosas: os partidos
comunistas são «nacionalistas de esquerda», e, logo são incapazes de
políticas internacionalistas ». Segundo o autor, estes «radicais pequeno-burgueses»
falam « em contradições insanáveis entre o nacional e o internacional na luta
dos trabalhadores ». A.V. sublinha que « os progressos realizados pelos povos
da União Soviética e dos outros países socialistas provam a superioridade do
modo de produção socialista em relação ao capitalista». « Em praticament todos
os países onde se verificaram revoluções socialistas foi impressionante o
desenvolvimento das forças productivas nomeadamente na industria e agricultura.
As evoluções negativas verificadas, fruto de erros internos e da acção externa
do capital e do imperialismo [...] não contradizem estes factos. Por muito que
isso custe aos “nossos” radicais pequeno-burgueses»
Assim, em 2012, voltamos a ouvir
estas afirmações barrocas. Alguns partidos comunistas europeus – cujo caso mais
paradigmático é o do partido comunista grego, o KKE -, debilitados na sequência do colapso do bloco
capitalista de Estado, encontram um novo fôlego num nacionalismo antieuropeu, espoletado
pela decomposição social das sociedades em crise.
António Vilarigues, com a sua
diatribe contra os «radicais pequeno-burgueses» efetua provavelmente um ajuste
de contas no interior da sua própria organização. De um modo mais geral,
responde à crítica que é feita ao partido comunista de resvalar para a defesa
de posições nacionalistas suscetíveis de conduzir a uma convergência com as
correntes da direita patriótica, uma tendência que se pode observar desde há
anos na Rússia com a emergência do nacional-bolchevismo e, mais recentemente,
na Grécia. A retórica marxizante e o culto do progresso económico, do produtivismo
e das forças produtivas, essa vulgata bolchevique que entende o
internacionalismo como uma adição de socialismos nacionais, envolvem a reivindicação
de um hipotético retorno do país de Camões à «independência nacional», concretizado
por uma saída unilateral do Euro, uma ideia de recuo nacional que contamina toda
a velha esquerda impotente perante a crise. No espírito dos chefes neo-estalinistas,
tratar-se-ia de uma etapa benéfica para o seu reforço. Não lhes passa sequer
pela cabeça que o único caminho para uma emancipação dos explorados em Portugal
possa porventura residir antes do mais numa união com os outros revoltados
europeus e ibéricos, ao contrário de um retorno à suposta «independência
nacional» e ao culto do patriotismo.
António Vilarigues e os seus
camaradas podem vir a ver-se fora da zona Euro, não em consequência de uma
improvável ação de massas sob a direção do partido, mas simplesmente por via do
desenvolvimento da crise do capitalismo e das decisões dos seus gestores, com
todo o seu cortejo de horrores, de autoritarismo político, de violências e de
nacionalismos exacerbados.
Para fundamentar as suas
afirmações, A.V. recorre a um texto que Álvaro Cunhal publicou em 1970,
« O Radicalismo Pequeno Burguês de Fachada Socialista». O dirigente
histórico do PCP tinha o dom dos títulos cativantes. Em 2012, A.V. atualiza o texto
ao gosto do momento presente: « Commo salientou o camarada Álvaro Cunhal [...],
a radicalisaçãão política da pequena burguesia, fruto do desenvolvimento do
capitalismo, é um fenómeno positivo. Entretanto, essa radicalisação é também
acompanhada por fenomenos negativos», designadamente, especifica A.V., «hesitações»,
«contradições», «desvios de direita e de esquerda», «manifestações de
impaciência e de desespero», tudo sintomas de doença grave, de que estariam
protegidos aquelas e aqueles que seguem as posições do partido, que podem
variar de acordo com as oscilações da linha, sempre com o fito de um
desenvolvimento harmonioso das forças produtivas nacionais.
Presentemente, o partido
comunista português e a central sindical dirigida pelos seus partidários, a
CGTP, têm dificuldade em readquirir um peso político numa sociedade esmagada
pelos efeitos da crise, pelas medidas de austeridade e de recessão implementadas
pelos sucessivos governos, de esquerda e de direita. A sua base está
desmoralizada por um sentimento de impotência, desorientada com a ineficácia da
ação partidária e sindical a que estava habituada. Até parece que os sintomas
que A.V. atribui ao «radicalismo pequeno-burguês» acabam por ser aqueles de que
padece hoje o povo comunista. Ao mesmo tempo, verifica-se uma radicalização de
setores da sociedade, tentados por novas formas de mobilização independentes, de
onde se eleva uma crítica da «democracia realmente inexistente» e da decadência
da vida política tradicional. Na juventude, observa-se um interesse pela
democracia de base, e mesmo pelas ideias do anticapitalismo. A tal ponto que o
serviço de ordem do sindicato maioritário se vê obrigado a «proteger» os seus cortejos
do contacto com estes jovens anticapitalistas que fazem ouvir a sua voz e
propõem uma reflexão sobre o estado do mundo que ultrapasse as fronteiras de um
pequeno país em ruínas. Mais
grave ainda, eis que franjas dos explorados até aqui habituados a desfilar docilmente
atrás dos chefes se cansam das manifestações indigentes, das greves gerais com
pouca adesão e das encantações repetitivas dos parlamentares comunistas, e se
decidem a agir de forma direta e muito pouco sensata, agredindo em termos
verbais, e mesmo físicos, ministros em deslocação e inclusivamente o corrupto
presidente da república, semeando o medo nessa nobreza democrática que teme o
incontrolável. E as gigantescas manifestações de 15 de setembro de 2012 por
pouco não culminaram na invasão do parlamento em Lisboa aos gritos de «O povo
unido não precisa de partidos!». Em resumo, o partido comunista está paralisado,
obrigado a ir atrás da cólera da rua, perante uma situação que se degrada
constantemente. Isto explica o sobressalto de António Vilarigues, que procura tranquilizar
as suas tropas apontando um perigo, invocando a este propósito a fórmula oca do
«radicalismo pequeno-burguês ».
O texto citado por A.V. do dirigente
estalinista lusitano Álvaro Cunhal foi publicado dois anos depois de maio de
68, num momento em que o partido estava também a braços com uma contestação e
uma radicalização de setores da juventude e da classe operária. Pela primeira
vez na sua história, o partido, ainda na clandestinidade, tinha de responder a
uma crítica de esquerda da sua tática da «revolução democrática» e de aliança
com a burguesia anti-salazarista. As circunstâncias mudavam rapidamente, alteradas
por um descontentamento social e uma revolta da juventude estudantil contra o
colonialismo, impregnada das ideias de maio de 68. A guerra colonial, interminável,
mortífera e impopular, que se desenrolava em três frentes em África (Guiné-Bissau,
Angola e Moçambique) havia acelerado a crise política de um regime fascizante
anacrónico que começava a incomodar alguns setores da burguesia local e uma
Europa capitalista em
formação. Enquanto o partido comunista continuava a defender a
necessidade de a juventude cumprir o serviço militar (e portanto a guerra) com
o objetivo tático de infiltrar a instituição militar, as deserções e a
resistência à guerra tornavam-se um fenómeno de massas e criavam uma corrente
de emigração política para a Europa, sobretudo para França, onde as redes da
emigração dita económica constituíam um apoio para os recém-chegados. Em Portugal,
o ativismo da corrente maoista e as suas propostas de afrontamento total com a
burguesia e de fim imediato do colonialismo e da guerra encontrava um eco nos
meios operários agitados por movimentos de greve. Grupos à esquerda do partido faziam
ações de sabotagem contra a máquina militar, e a juventude politizada escapava
progressivamente ao controlo do partido comunista. É neste novo contexto que
surgem grupos e publicações que se reclamam do marxismo e se afirmam em rutura
com a linha do partido. A maioria posicionou-se na área de influência do maoismo,
outros assumiram a ideologia castro-guevarista – tida como menos reformista e
burocrática – outras ainda propuseram-se fazer a crítica do marxismo-leninismo.
Entre estes últimos, a revista Cadernos
de Circunstância (CC), publicada em Paris, teve uma influência importante nos
meios do exílio e, depois, em setores da juventude estudantil em Portugal, o
que lhe valeu ter ficado na mira do texto de Álvaro Cunhal, enquanto exemplo da
famosa «radicalidade pequeno-bourguesa».
II
Participei na vida do grupo dos CC, de 1968 até à sua dissolução em
1970. As informações e reflexões que aqui apresento só me comprometem a mim, e
se por vezes sou levado à utilização do «nós», tudo o que digo deve ser
entendido como expresso na primeira pessoa. Não escrevo estes apontamentos com
qualquer preocupação de mundanalidade (quem foi quem e quem é que se tornou o
quê…), o que seria desprovido de significado e de interesse, nem sequer animado
por qualquer espírito de arquivista académico. Faço-o com o objetivo de
contribuir para colocar o trabalho deste grupo na perspetiva da história das
ideias radicais dos anos 60 e 70 do século passado e de ajudar o leitor de hoje
a reapropriar-se destes textos de uma maneira ativa, aberta ao presente e aos
seus desenvolvimentos.
Os textos dos CC refletem as questões que se nos
colocavam na época. Algumas das análises ver-se-iam confirmadas posteriormente,
outras não. Dito isto, existe uma filiação entre as posições do marxismo antiautoritário
defendidas pelos CC e as aspirações
dos movimentos que se radicalizam hoje perante os efeitos devastadores da crise
capitalista e a desestruturação das sociedades, do mesmo modo que as posições e
as análises de Álvaro Cunhal em 1970 se encontram no modo de funcionamento do
partido comunista nos nossos dias, cujos princípios políticos não mudaram nem
uma vírgula.
O primeiro número dos CC foi publicado em Paris, em novembro
de 1967, editado por um grupo de que faziam parte Alfredo Margarido, Aquiles de
Oliveira, Fernando C. Medeiros, João Rocha, José Porto e Manuel Villaverde
Cabral. Alberto Melo e José dos Santos juntar-se-lhes-iam posteriormente. Pela
minha parte, fugindo à asfixia mortífera da sociedade salazarista, desertor das
forças armadas coloniais, cheguei a Paris no outono de 1967 e, poucos dias
depois, descobri a revista na livraria La Joie de lire. Logo que estabeleci o contacto,
fui imediatamente integrado na vida do grupo, na qual me empenhei plenamente e
apaixonadamente até a aventura ter chegado ao fim. O texto «Para uma análise
das Forças Armadas em Portugal», reflexão sobre a minha experiência de quatro
anos na instituição militar, foi publicado no número 4/5, de novembro de 1968.
Tinha acabado de me inserir na
vida do círculo dos CC quando o turbilhão
do movimento de Maio de 68 veio alterar de cima a baixo a atividade e as
perspetivas do nosso trabalho. O espírito dos CC libertou-se então da estreiteza provinciana e nacionalista, e
essa posição, juntamente com a rejeição incondicional do colonialismo e da sua
guerra, era partilhada pela nossa pequena coletividade. Creio poder falar aqui
na primeira pessoa do plural: jamais vivemos o Maio de 68 colocando-nos de fora,
com o olhar de exilados portugueses, mas, sim, como exilados totalmente empenhados
num movimento emancipador que ultrapassava as preocupações nacionais. Tínhamos
consciência de que as consequências do movimento em curso, a sua dinâmica
internacional, iriam necessariamente acelerar o fim do regime iníquo e bárbaro
que vigorava em Portugal.
Ele punha bem a nu o lado timorato da oposição democrática e
antifascista, tema privilegiado dos partidos da esquerda clássica. Não foi por
acaso que o subtítulo da revista, Análise
e documentos da vida portuguesa, desapareceu da capa depois de maio de 68. Assim,
não procurámos investir as diversas instituições portuguesas de Paris (como a Maison du Portugal da cidade
universitária, ocupada por camaradas estudantes, alguns dos quais viriam mais
tarde a aproximar-se das nossas posições). Preferimos inserir-nos no movimento
e nas suas organizações autónomas, desde a Sorbonne até aos Comités Etudiants-travailleurs de
Censier. E fizemo-lo em termos individuais, com toda a independência e
autonomia de opções, alguns mais do que outros, sem espírito de grupo nem
sectarismo de capela. Com efeito, embora existisse um coletivo dos CC, era difícil considerá-lo um grupo no
sentido tradicional. Haviam-se estabelecido laços pessoais mais próximos entre
alguns de nós que, bem entendido, se fortaleceram com a nossa participação no
movimento.
Antes de maio de 68, os membros dos CC interessavam-se pelas correntes dissidentes do marxismo, liam e debatiam revistas como Socialisme ou Barbarie, Arguments, ou L’Homme et la Société. Estavam igualmente atentos aos escritos de Guy Debord e da revista Internationale Situationniste. Alguns exilados de Portugal e das colónias portuguesas acompanhavam também a atividade de grupos como Pouvoir Ouvrier, saído de Socialisme ou Barbarie. O pequeno círculo era igualmente sensível à corrente surrealista que alargava o campo do pensamento radical. Sobretudo Alfredo Margarido mantinha contactos com o grupo surrealista português. Existia - falo por mim mas creio que era comum a todos - uma curiosidade sem limites, um sentimento entusiasmante de descobrir um mundo de ideias e de experiências que nos havia sido ocultado e que nos transportava para o futuro. Antes da minha vinda para Paris, tinha lido o Manifesto Comunista e O Estado e a Revolução em más traduções brasileiras. E, quanto a literatura politica, era tudo! E agora via-me mergulhado num universo de ideias e de leituras de que me tinha de pôr a par. Havia nessa altura em Paris a livraria La Vieille Taupe, uma espécie de caverna pré-histórica cheia de livros poeirentos, onde se podia encontrar os textos malditos do marxismo e muitos outros. Mal se transpunha a porta estava-se perante pessoas que discursavam, argumentavam, debatiam, de forma exaltada em torno de questões políticas que todos consideravam essenciais. Villaverde Cabral era, de nós todos, o que mais facilmente acedia a esses meios e fazia-nos participar dessa superabundância de ideias e de debates. No que me diz respeito, do alto dos meus 22 anos e malgrado o orgulho do meu ato de liberdade que havia mudado a minha vida e me projetara no mundo, reduzia-me à minha insignificância diante de tanta riqueza e entusiasmo. Acompanhava tudo, absorvia e refletia. Diga-se de passagem que a grande maioria daqueles que frequentavam então a livraria não tem nada a ver com a evolução posterior do proprietário do local e de alguns dos seus acólitos que enveredaram pelo cretinismo revisionista e negacionista. Mas essa é outra história…
III
Maio de 68, o movimento
estudantil e a greve geral, foram um furacão, um terramoto. E foi ainda mais emocionante
para aqueles que, como nós, viviam a política de uma maneira autónoma e independente,
fora das organizações tradicionais. Num ápice vi-me envolvido, juntamente com
Villaverde Cabral e Fernando Medeiros, no tumulto dos Comités d’action travailleurs-étudiants que se haviam instalado no
triste edifício da faculdade de Censier, que se tornou uma verdadeira colmeia
subversiva. Ao acaso das comissões, das reuniões, dos encontros e das ações, sou
erigido em tradutor para português dos panfletos do comité de ação do edifício.
Mantínhamos o contacto entre nós, víamo-nos entre as manifestações, os combates
de rua, as distribuições de panfletos ou as intervenções diante desta ou
daquela fábrica. Mas pode dizer-se que, durante esse mês, cada membro (se é que
este termo tem aqui algum significado) dos CC
fundiu-se na agitação política do movimento. E só depois do refluxo do
movimento retomámos contacto de uma forma mais regular para publicar, até 1970,
mais quatro números da revista.
Tentativa insólita, esta de
recordar estes meses em que a vida se transformou de um modo radical. Para além
da riqueza dos encontros e das discussões, dos desejos de revolução, da
fraternidade, dos amores e da intensidade dos momentos, se quisesse condensar a
experiência de Maio de 68 numa ideia, diria que é o sentimento único e exaltante
de ter vivido um tempo diferente que
mais me marcou. Um tempo simultaneamente
intenso e lento, em que o presente não estava separado do futuro, durante o
qual nos cruzámos com centenas de outros seres tão transformados como nós próprios,
os conhecemos, debatemos com eles.
O nosso posicionamento ao lado das
correntes revolucionárias anti-bolcheviques foi um processo natural, deixando
definitivamente de parte guevarismos, maoismos e mesmo trotskismos (curiosamente
ausentes nos meios de exilados portugueses que encontrei, embora Trotski tivesse
aí algum crédito). Descobri a revolução alemã de 1918 e os escritos de Rosa Luxemburgo,
os dos comunistas de conselhos, a revolução húngara de 1956 e as primeiras
fissuras no bloco soviético. Vivi pela primeira vez a fraternidade dos
companheiros anarquistas, um anarquismo que fazia uma ligação não conflitual com
o marxismo heterodoxo por onde eu andava. O meio onde nos movíamos era o dos
companheiros do 22 Mars, da revista Noir et Rouge, de Informations et Correspondance ouvrières, do Groupe de Liaison et Action des Travailleurs, da revista Révolution Internationale. Todos estes
contactos e debates se foram evidentemente encontrar a seguir nos textos dos CC.
Nos primeiros números da revista,
as análises de Fernando Medeiros e de Villaverde Cabral sobre a sociedade
portuguesa haviam-se demarcado da prosa ideológica e rígida das correntes do
comunismo ortodoxo e do maoismo. Partindo do estudo da economia portuguesa e da
sua integração progressiva no capitalismo europeu, das «duas táticas da burguesia
portuguesa», a revista permitira ultrapassar as visões moralizantes e
maniqueístas do fascismo português e divisar as suas falhas e os seus limites. Ela
inseria o microscópico caso português no movimento do capitalismo, analisando a
partir daí as formas novas das lutas de classe que emergiam desde a década de
1960. Depois do Maio de 68, os artigos dos CC
foram ainda mais marcados por uma visão internacionalista, inserindo a situação
portuguesa numa perspetiva simultaneamente mais lata e complexa. É esta
frescura e originalidade do trabalho do grupo que, em minha opinião, explica a
atração que ele exerceu e o seu eco.
Alguns meses depois do Maio de 68,
por ocasião de uma infrutífera tentativa de prosseguir estudos universitários –
rapidamente abandonada por motivos de sobrevivência material, mas também por
causa da minha inadaptação ao enquadramento escolar -, encontrei João Freire, outro desertor da marinha
portuguesa. Tornámo-nos amigos e João Freire passou também a integrar o
coletivo do grupo, onde viria a desenvolver grande atividade. Juntamente com
ele, concebemos o projeto de uma coleção de textos (Luta de classes), pouco conhecidos ou ignorados, do movimento revolucionário.
Daí resultou a publicação de dois volumes : Marxismo Contra Ditadura, provavelmente um dos primeiros textos de Rosa
Luxemburgo editados e difundidos em português; e, depois, Textos Revolucionários, seleção de panfletos, excertos e
proclamações de movimentos desde a Rússia de 1905 a Maio de 1968 em França,
passando pela Revolução Húngara de 1956.
A seguir a Maio de 68, Hipólito
dos Santos também se juntou aos CC. Debaixo
de uma discrição aparente e de uma reserva tranquila, havia toda uma história
de experiências conspirativas (designadamente a revolta de Beja em 1961), assim
como de contactos com os meios militantes passados e presentes. Conhecia sobreviventes
do sindicalismo revolucionário, mas tinha também os seus créditos junto de grupos
que, cansados da rotina dos compromissos políticos das forças de esquerda, haviam
empreendido ações diretas contra um regime assediado (designadamente a LUAR,
Liga de União e Ação Revolucionária). Assim, foi no átrio do hotel onde João Freire
trabalhava como rececionista noturno, que conhecemos Reis Sequeira, velho
militante anarco-sindicalista do sindicato dos corticeiros que vivia então em
Paris e que acompanhara o Maio de 68 com entusiasmo. Ele fornecia-nos uma peça
que faltava no puzzle do nosso percurso,
dando uma continuidade mais coerente ao nosso olhar sobre a sociedade
portuguesa.
Finalmente, outros jovens
exilados, estudantes ou não, em França mas também na Alemanha, na Bélgica, na
Suécia e na Inglaterra, haviam descoberto a revista e contactado o grupo. E o
mesmo aconteceu com pessoas isoladas, que tinham abandonado as velhas
organizações e que conhecêramos na rua e à porta das fábricas, nas discussões e
debates que abundavam, incluindo alguns maoistas cujas convicções ortodoxas
haviam sido momentaneamente abaladas pelo Maio de 68. Existia assim um pequeno
meio fora da zona de influência do marxismo-leninismo, no qual circulavam novas
ideias, fervilhante de iniciativas e de atividades. Sem esquecer os laços com
todos aqueles e aquelas que nos liam, nos escreviam e distribuíam a revista em
Lisboa.
A atividade da quase totalidade
das correntes políticas no exílio estava impregnada de nacionalismo e de um
patriotismo folclórico. Nos anos que se seguiram ao Maio de 68, havia dois grupos
que rejeitavam com intransigência estas posições de recuo e de fechamento: os CC e um círculo próximo das ideias
situacionistas - Américo Nunes, António
José Forte e Carlos da Fonseca. Entre os dois tinham-se estabelecido laços
informais, simultaneamente próximos e conflituais, que passavam muitas vezes
por animosidades pessoais e por problemas de ego. No inverno de 1968, foi
apresentada uma lista às eleições para a direção da UEPF (Union des Etudiants Portugais
en France), até aí controlada pelo partido comunista. A lista tinha como
programa único a proposta de dissolução pura e simples dessa ridícula estrutura
burocrática. Sinal dos tempos, a lista encabeçada por José dos Santos bateu a
dos maoístas e a dos comunistas. Uma vez eleitos, proclamámos a dissolução da
dita associação, num remake do que os
situacionistas haviam feito em Estrasburgo com a UNEF (Union nationale des étudiants de France), para consternação dos grupos e grupúsculos especializados
na atividade política responsável e razoável que viam nesta estrutura um trampolim
para as suas futuras carreiras politiqueiras.
Por alturas de 1970, a chegada de jovens
proletários movidos por uma revolta de classe intuitiva deu um novo impulso à
atividade do grupo dos CC. Estou a
pensar no meu amigo Maurício Martins, que nos deixou brutalmente em Fevereiro
de 1970, e no José Maria Carvalho Ferreira, cuja energia inesgotável e recusa
do compromisso arrebatava o coletivo da revista.
Animado pelas ideias de Maio de
68, pelo alargamento dos contactos e pelo eco que as ideias da revista suscitavam
em Portugal onde o estado de crise do regime era cada vez mais evidente, o
grupo dos CC redobrou de energia e de
iniciativas, algumas das quais bastante originais. Em 1971, utilizando os
contactos que João Freire e eu próprio tínhamos conservado na marinha, conseguimos
enviar para Lisboa malas a abarrotar de propaganda política, transportadas a
bordo de um submarino comprado pelo regime salazarista à França democrática! Apesar
dos meios limitados e do impacto reduzido da distribuição, essencialmente
concentrada no meio estudantil, as ideias faziam o seu caminho e começavam a
inquietar o partido comunista, que, malgrado o apoio da «pátria do socialismo»,
não tinha acesso a submarinos.
IV
O Maio de 68 havia propulsionado
a atividade da revista no sentido de uma perspetiva internacionalista que iria,
como é natural, fazer rebentar o quadro em que se inserira nos seus primórdios.
Os membros mais ativos do coletivo empenhavam-se ao lado de camaradas
exteriores aos CC em projetos sem
ligação direta, imediata, com a situação portuguesa. Um exemplo disto, entre
outros, foi a publicação de uma coleção de brochuras - «Lutte de classe internationale». Assim, em 1970,
foram editados três títulos : Classe
ouvrière et capital en Belgique, sur la grève des mineurs du Limbourg; Etats-Unis: luttes ouvrières en 1970; e Portugal: lutte de classe et guerre
coloniale. Ao mesmo tempo, as nossas análises da situação portuguesa foram
retomadas noutras publicações. No entanto, a necessidade de uma publicação
orientada para Portugal não tinha sido posta de parte, como atesta o
aparecimento de Os Proletários Não Têm Pátria,
cujo primeiro número saiu em fevereiro de 1974, por iniciativa de José Carvalho
Ferreira.
Mas, após o Maio de 68, o que mais
interessou os membros dos CC foi o
movimento social em Itália, em particular as suas correntes e grupos mais
radicais, Potere operai e Lotta continua. A leitura inovadora que
estes grupos faziam de Marx e de Lenine, a sua análise política da questão da
violência, pareciam trazer elementos novos. Sobretudo Villaverde Cabral e João
Freire haviam estabelecido contactos regulares com alguns militantes e teóricos
daquilo que se designava por «autonomia italiana», com os quais se iniciou um
debate. Em 1970, podia mesmo considerar-se que a revista estava próxima desta
corrente. Pela minha parte, tinha-me relacionado com os grupos franceses das
correntes do marxismo antiautoritário, do comunismo antibolchevique, que descobrira
no Maio de 68. Através de companheiros da ICO,
tinha conhecido a obra de Paul Mattick e de outros teóricos comunistas de
conselhos, que se me afigurava a corrente mais coerente com o meu percurso
passado e com a rejeição do voluntarismo e dirigismo da política leninista.
Quando se deu a Revolução dos Cravos, o grupo da revista
já não existia, mas os laços nunca se romperam com Fernando Medeiros, Alfredo
Margarido, José dos Santos e Alberto Melo, que, todavia, se haviam distanciado
do ativismo do núcleo de que eu fazia parte. Aliás, alguns destes laços reativaram-se
durante os dois anos de agitação social e política em Portugal em torno de José
Maria Carvalho Ferreira e dos seus inúmeros contactos no seio do mundo operário
na região de Lisboa e igualmente com João Freire. Este, tendo afirmado progressivamente
o seu empenhamento na corrente anarquista, teve um papel essencial no
reaparecimento de publicações anarquistas depois do 25 de Abril. Finalmente, as
escolhas de uns e de outros, entre aqueles que, minoritários, decidiram
permanecer em França, e os que optaram por um regresso a Portugal, desempenharam
também um papel no enfraquecimento dos contactos.
As circunstâncias haviam, pois,
mudado. E, tendo nós contribuído para a mudança das circunstâncias, as novas circunstâncias
tinham-nos igualmente mudado…
Os membros dos CC
evoluíram de acordo com as suas respetivas opções de vida. Alguns
distanciaram-se da atividade política, outros, pelo contrário, foram atraídos e
devorados pela pequenez da política institucional, que, no entanto, tão
duramente haviam criticado antes… Uns permaneceram fiéis às suas paixões de
emancipação social, outros orientaram-se para outras atividades e novas
prioridades.
Os textos dos CC encontram, quarenta e seis anos mais
tarde, novos leitores, o que mostra que, desta aventura, fica o trabalho
crítico produzido por um pequeno grupo de pessoas, que, num dado momento, se encontraram
na encruzilhada de diferentes caminhos.
Éramos o produto de uma sociedade
que atravessava uma longa noite totalitária, marcada pelo sistema iníquo do
colonialismo e das suas guerras. O exílio havia-nos emancipado da estagnação
sufocante. Os membros dos CC tinham
então metido ombros à análise dos sinais de decomposição e rutura que se
observavam na sociedade portuguesa. Longe de Portugal, puderam libertar-se da
oposição restrita fascismo-antifascismo que paralisava a arma da crítica. Para
se desembaraçar da língua de pau marxista-leninista, os CC tinham de iniciar a sua crítica, bem como a dos regimes que dela
se reclamavam. E o coletivo da revista tinha acabado de encetar este caminho
escarpado quando se viu projetado no turbilhão revolucionário de Maio de 68, onde
a subversão da vida e do mundo estava na ordem do dia. E então todas estas
questões se tornaram mais claras.
O nosso otimismo depois desta
experiência toldou indubitavelmente a nossa capacidade de avaliar até que ponto
o sistema se podia autotransformar e sobreviver. Foi o que confirmou, designadamente,
a evolução subsequente ao 25 de Abril de 1974 em Portugal, onde a vitória da
alienação mercantil escondeu o atolamento do país numa estagnação de um outro
tipo, a da mediocridade e do cinismo da democracia parlamentar, que nos conduziu
diretamente ao desastre que se exibe perante os nossos olhos.
Hoje em dia pode ver-se que a
consolidação do sistema era apenas aparente e escondia a sua fragilidade e a
sua natureza mortífera. A promessa do bem-estar mercantil transformou-se em
ameaça de empobrecimento generalizado no quadro do capitalismo globalizado, onde
Fukushima e Guantanamo são rostos inesperados do progresso democrático.
Jorge Valadas